30.9.10

a lição

era uma maçã enorme, 
a maior fruta de toda a tigela. 
guardava-a para um momento especial.
acordei no meio da noite com muita fome 
e decidi: a maçã!

não tinha gosto de nada.
como pode, perguntei-me,
a aparência mais imponente
com o conteúdo mais insípido?

até a maçã, 
no meio da madrugada,
nos ensina algo 
a respeito da vida


Arlesheim, junho 2010

28.9.10

Kurt Schwitters: An Anna Blume

"An Anna Blume" está entre os poemas mais polêmicos da literatura alemã. Até hoje se discute se Kurt Schwitters estava falando sério ou brincando... Diga aí, leitor/a: Kurt ama ou não ama Anna? ;-)


AN ANNA BLUME

Merzgedicht I
(um 1919)

O du, Geliebte meiner siebenundzwanzig Sinne, ich
liebe dir! — Du deiner dich dir, ich dir, du mir.
— Wir?
Das gehört (beiläufig) nicht hierher.
Wer bist du, ungezähltes Frauenzimmer? Du bist
— bist du? — Die Leute sagen, du wärest — lass
sie sagen, sie wissen nicht, wie der Kirchturm steht.
Du trägst den Hut auf deinen Füssen und wanderst
auf die Hände, auf den Händen wanderst du.
Hallo, deine roten Kleider, in weisse Falten zersägt.
Rot liebe ich Anna Blume, rot liebe ich dir! — Du
deiner dich dir, ich dir, du mir. — Wir?
Das gehört (beiläufig) in die kalte Glut.
Rote Blume, rote Anna Blume, wie sagen die Leute?
Preisfrage:   1.) Anna Blume hat ein Vogel.
                   2.) Anna Blume ist rot.
                   3.) Welche Farbe hat der Vogel?
Blau ist die Farbe deines gelben Haares.
Rot ist das Girren deines grünen Vogels.
Du schlichtes Mädchen im Alltagskleid, du liebes
grünes Tier, ich liebe dir! — Du deiner dich dir, ich
dir, du mir, — Wir?
Das gehört (beiläufig) in die Glutenkiste.
Anna Blume! Anna, a-n-n-a, ich träufle deinen Namen.
Dein Name tropft wie weiches Rindertalg.
Weiss du es, Anna, weisst du es schon?
Man kann dich auch von hinten lesen, und du, du
Herrlichste von allen, du bist von hinten wie von
vorne: »a-n-n-a«.
Rindertalg träufelt streicheln über meinen Rücken.
Anna Blume, du tropfes Tier, ich liebe dir!


Para Anna Flor*
Poema Merz I
(c. 1919)

Ó tu, amada dos meus vinte e sete sentidos, eu
lhe amo! — Tu teu te a ti, eu a ti, tu a mim.
— Nós?
Isto (aliás) não vem ao caso.
Quem és tu, dona inumerável? Tu és
— és? — Dizem que serias — deixa
que digam, eles nem sabem como a torre da igreja se sustém.
O chapéu sobre os pés, caminhas
sobre as mãos, com as mãos tu caminhas.
Olá, teus vestidos vermelhos, serrados em pregas brancas.
Eu amo Anna Flor vermelho, vermelho eu lhe amo! — Tu
teu te a ti, eu a ti, tu a mim. — Nós?
Isto (aliás) é coisa para a brasa fria.
Flor vermelha, vermelha Anna Flor, o que andam dizendo?
Responda e ganhe:  1. Anna Flor tem um macaco no sótão.
                               2. Anna Flor é vermelha.
                               3. Qual é a cor do macaco?
Azul é a cor do teu cabelo amarelo.
Vermelho é o chiado do teu macaco verde.
Tu, moça simples de vestido de chita, tu, doce
bicho verde, eu lhe amo! — Tu teu te a ti, eu
a ti, tu a mim, — Nós?
Isto (aliás) é coisa para o braseiro.
Anna Flor! Anna, a-n-n-a, gotejo o teu nome.
Teu nome pinga como tenra gordura bovina.
Sabes, Anna? Já o sabes?
Posso ler-te também de trás para frente, e tu,
a mais formosa de todas, serás sempre, de trás para frente e de
frente para trás: »a-n-n-a«.
Gordura bovina goteja acaricia minhas costas.
Anna Flor, tu, bicho gotejante, eu lhe amo!


Tradução Fabiana Macchi
Publicado em Sibila - Revista de Poesia e Cultura, Ano 4, n. 7, 2004



* A primeira versão da tradução deste poema foi feita sem que eu soubesse da existência da tradução de Haroldo de Campos, datada de 1956. A leitura posterior da tradução de H. de Campos levou-me a uma revisão da minha primeira versão. 

Não se sabe se por opção ou por equívoco, Haroldo de Campos traduziu literalmente a expressão idiomática "ein Vogel haben" - "ter um pássaro" -, que significa "não bater bem da bola", "ter um parafuso a menos".  Eu optei por uma expressão idiomática semelhante em português: "ter macacos/macaquinhos no sótão", que no Brasil significa exatamente "ter um parafuso a menos" e também tem uma estrutura sintática e semântica semelhante (verbo ter + animal) à da expressão usada no opriginal.
   

25.9.10

Sarau Ponto e Vírgula

Foi um projeto muito gostoso e divertido que deixou saudades: do projeto e dos amigos, que agora tomaram novos rumos. Fizemos até "carreira internacional", com convite para apresentações em Zurique. Seguem aqui alguns "recuerdos":










Maurício Pinheiro, Fabiana Macchi, Nanete Desser e Clóvis Inocêncio no Musigbistrot, em Berna


23.9.10

Entrevista à swissinfo

Universidade forma tradutores de Português

Fabiana Macchi na Universidade de Ciências Aplicadas de Zurique.
Legenda: Fabiana Macchi na Universidade de Ciências Aplicadas de Zurique. (swissinfo)

A partir de outubro, a formação será ainda mais atrativa com a entrada em vigor do sistema de Bolonha e o reconhecimento de diplomas em toda a Europa.

A reponsável pelo curso, Fabiana Macchi, explica que trabalha com material didático do Brasil e de Portugal, para ampliar perspectivas.

"O Brasil é um grande mercado para tradução e o Português é uma das línguas oficiais da União Européia. Então acho que a tendência é positiva", afirma Fabiana Macchi, professora no Instituto de Tradução e Interpretação da Universidade estadual de Ciências Aplicadas de Zurique.

Mercado de trabalho

Em 2004, ela foi chamada pela Faculdade de Lingüistica Aplicada da Universidade estadual de Ciências Aplicadas de Zurique para implantar o curso de tradutores em português, única formação a nível acadêmico na Suíça de expressão alemã.

A professora gaúcha - com mestrado em tradução na Universidade de Mainz, na Alemanha, onde também lecionou - explica que existem três categorias de línguas em matéria de tradução: A, para as línguas maternas; B, para a primeira língua estrangeira e C, para as línguas ditas complementares como o Português. O objetivo, dependendo do interesse, é alçar a língua portuguesa à categoria B.

Também há critérios para a seleção de candidatos ao curso de tradução e é exigido o nível B2, que requer bom conhecimento da língua portuguesa para ser admitido.

Ampliar perspectivas

Acerca das diferenças entre o Português de Portugal e o do Brasil, Fabiana Macchi responde que faz questão de trabalhar com material didático dos dois países e de incentivar a competência nas duas normas. "O importante é ampliar e não restringir o mercado de trabalho dos futuros tradutores".

A partir de outubro próximo, haverá mudanças na formação de tradutores com a introdução de um bacharelado de três anos, acompanhando a adaptação de todas as universidades suíças ao sistema de Bolonha, para harmonização das universidades européias.

O bacharelado em tradução terá dois ramos de formação: comunicação técnica e comunicação intercultural, opções que poderão ser melhor adaptadas ao mercado de trabalho. Outra vantagem da incorporação ao sistema de Bolonha será o reconhecimento automático de diplomas em toda a Europa. "Será sem dúvida um fator de maior atratividade para os profissionais", afirma a professora.

Tradução literária

Em paralelo aos cursos no Instituto de Tradução, da preparação de uma tese de doutorado e das aulas de Alemão que ministra, Fabiana Macchi também é tradutora literária de autores alemães, austríacos e suíços.

Seu último trabalho, publicado no Brasil pela editora DBA, é um romance de Aglaja Veteranyi, romena radicada na Suíça e que escreve em alemão. "Porque a criança cozinha na polenta" conta a história de uma família de artistas de circo que foge da ditadura de Ceausescu para a Europa ocidental em busca do sonho de liberdade, riqueza, fama e felicidade.

"O livro teve uma boa aceitação no Brasil e a autora é de bastante sucesso na Suíça", conclui Fabiana Macchi.

swissinfo, Claudinê Gonçalves
23. Fevereiro 2006



17.9.10

Paulo Leminski: poema

Se eu fosse Paulo Leminski, hoje eu teria escrito:


Parada Cardíaca

Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure, 
vem de dentro.

Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

16.9.10

Bertolt Brecht: poema



Fiz minha dissertação de Mestrado sobre a poesia poética de Bertolt Brecht. Mas isso já faz algum tempo...

Se eu fosse Bertolt Brecht, hoje teria escrito:


Der Radwechsel

Ich sitze am Strassenrand
Der Fahrer wechselt das Rad.
Ich bin nicht gern, wo ich herkomme.
Ich bin nicht gern, wo ich hin fahre.
Warum sehe ich den Radwechsel
Mit Ungeduld?



A Troca da Roda

Estou sentado à beira do caminho
O condutor troca a roda.
Não gosto de estar lá de onde venho.
Não gosto de estar lá para onde vou.
Por que olho a troca da roda
Com impaciência?



Tradução de Paulo César de Souza
em "Brecht - Poemas 1913-1956", Brasiliense, 1986*.
*existe uma reedição mais recente desta coletânea, pela Editora 34.


14.9.10

E o que Goethe tem a ver com isso?


Aglaja Veteranyi e a Literatura Alemã

Não que a literatura alemã tivesse ficado até agora imune a influências estrangeiras. Muito pelo contrário. Pode-se justamente afirmar que ela é fruto de influências externas amalgamadas ao longo dos séculos. Ou seriam de origem germânica a balada, a elegia, o aforismo e tantos outros gêneros em que se consagraram grandes autores alemães?

Um estudo da história da tradução na Alemanha (bem como em outros países, claro) delinearia as rotas das influências literárias e exigiria ajustes na história da chamada literatura nacional. Exatamente nos momentos em que se considerava mais inovadora, a literatura alemã era, de fato, uma literatura alemanizada, através de adaptações, de importação e inspiração. (Antropofagismo germânico?) Do romantismo ao nacional-socialismo, porém, houve constantemente a preocupação de "limpar" a literatura alemã de todas as influências internacionais.

Paradoxalmente, foram exatamente os horrores do regime nazista que vieram expor a literatura alemã a novas influências internacionais. A produção literária dos autores exilados ficou, em boa parte, perdida, espalhada por diversos países. Vários autores passaram a escrever na língua do país de seu exílio (cito Paul Celan e Kurt Schwitters, entre tantos outros), ou sob novas óticas, adquiridas na sua experiência no estrangeiro.

A partir dos anos 50, chega na Alemanha a primeira leva de estrangeiros que vão trabalhar na reconstrução do país, aos quais se juntarão, mais tarde, refugiados políticos e econômicos, os filhos dos primeiros, os filhos dos segundos e, finalmente, os filhos da globalização. "Chamamos mão-de-obra, vieram seres humanos", resumiu Max Frisch. Estava formado o caldo de onde surgiria, a partir da segunda metade dos anos 90, uma nova vertente da literatura de língua alemã.

Aglaja Veteranyi, nascida na Romênia, era um dos expoentes desta nova geração, cujos traços comuns poderiam-se resumir em uma biografia incomum, a experiência de vida em duas culturas e duas línguas diversas e o conseqüente descompromisso com as tradições sócio-burguesa e literária dos dois países em questão. Em seus poemas em prosa, ou suas mini-histórias, Aglaja nos confronta com seres humanos perdidos, grotescos, inseridos ou não na sociedade, coniventemente dilacerados por ela ou vítimas da sua indiferença. Tudo isso servido de forma aparentemente ingênua, com o certo humor que o absurdo pode causar, numa linguagem muito concisa - às vezes quase infantil -, sem permitir ao leitor, porém, o conforto do distanciamento. Nada se sustenta no mundo que Aglaja nos apresenta, apenas a precisão do seu olhar.

Aglaja Veteranyi, que decidiu morrer em fevereiro de 2002, deixou-nos dois romances e uma coletânea de suas mini-histórias.


Fabiana Macchi
Publicado na revista Coyote N.11, 2005

12.9.10

"Por que a criança cozinha na polenta" recebe vários prêmios em festival de teatro

O espetáculo "Por que a criança cozinha na polenta" recebeu os seguintes prêmios no 12° Festival de Teatro de Americana 2010:


MELHOR SONOPLASTIA
MELHOR FIGURINO
MELHOR TEXTO ADAPTADO
MELHOR ATRIZ
MELHOR DIREÇÃO
MELHOR ESPETÁCULO


Parabéns a Nelson Baskerville (diretor) e a Cia Mungunzá de Teatro!

O texto que serviu de base para a adaptação foi o romance "Por que a criança cozinha na polenta", de Aglaja Veteranyi, cuja tradução é de minha autoria:

Romance: Por que a criança cozinha na polenta
Autora: Aglaja Veteranyi
Coleção: Risco: Ruído
Tradução: Fabiana Macchi
Editora: DBA, São Paulo, 2004


O cartaz da peça


O espetáculo "Por que a criança cozinha na polenta". Por Lenise Pinheiro.

Cia Mungunzá de Teatro. Por Ivan Monticelli.


Nelson Baskerville, Fabiana Macchi e Cia Mungunzá de Teatro. Por Marcos Felipe.


o lugar da vida

a vida se passa no meio: eu vou daqui com as minhas idéias e planos e vejo o que a vida me traz de lá, como num diálogo, em que se espera a reação e compreensão do outro para ajustar a próxima frase.

11.9.10

a casa

agora
o asfalto
encobre
minhas brincadeiras
de menina

e o balanço
(que não há)
ainda é verde
na memória

9.9.10

Entrevista



Tradução faz a ponte entre culturas distintas


Professora, tradutora, viajante, migrante atenta ao mundo que a cerca e empenhada em fazer a ponte entre mundos lingüísticos diferentes, encurtando distâncias entre as culturas. A gaúcha Fabiana Macchi conversou por E-mail conosco para falar sobre seu trabalho e a publicação no Brasil de uma de suas mais recentes traduções.


1. Em dezembro de 2004 foi lançada no Brasil a versão em português do livro "Warum das Kind in der Polenta kocht", da autora suíça Aglaja Veteranyi, traduzido por você. Do que ele trata?

O livro conta a história de uma família de artistas de circo que foge da ditadura de Ceausescu, na Romênia, e vem para a Europa ocidental em busca do sonho de liberdade, riqueza, fama e felicidade. Quem nos conta a história é uma menina, filha do palhaço e de uma trapezista. A realidade, porém, se mostra bem diferente do sonho. A menina tenta compreender esta realidade: as outras mentalidades que acaba conhecendo, as condições de vida nos países pelos quais viajam, a situação política na Romênia, a própria condição de ser sempre estrangeira, mas tudo isso da perspectiva inocente de uma criança. Além da história em si, que é cheia de surpresas e cativa o leitor, “Por que a criança cozinha na polenta” se torna fascinante porque nós, leitores adultos, conseguimos desvendar a realidade que está por trás dos relatos aparentemente ingênuos da menina. O livro é extremamente poético, mesmo revelando uma dura realidade.

2. Aglaja era romena e veio na adolescência para a Suíça. Era uma imigrante, como nós. Essa não foi a primeira autora migrante que você traduziu. Por que a predileção por autores com esse perfil?

Não sei se chega a ser uma predileção, mas a emigração é um tema que me impressiona e que está de alguma forma presente na biografia ou nas obras da maioria dos autores que traduzi. Meu primeiro encontro com essa temática foi através de Bertolt Brecht, sobre quem fiz minha tese de mestrado. Brecht era um autor engajado, político, no sentido amplo da palavra, e viveu 20 anos no exílio durante o regime nazista e a Segunda Guerra Mundial. Depois de Brecht, e por causa dele, acabei pesquisando sobre outros autores alemães que partiram para o exílio no mesmo período.

A literatura alemã do século XX é profundamente marcada pela ruptura causada pela II Guerra e pelo exílio. A produção literária dos autores exilados ficou, em boa parte, perdida, espalhada por diversos países. Até hoje pesquisadores e editores procuram recuperar a obra destes autores e, com isso, uma boa parte da história literária alemã deste período sombrio.

Mesmo em autores que ficaram na Europa durante a II Guerra, percebe-se a necessidade de tematizar a ruptura causada pela guerra, de reescrever a própria identidade a partir de novos parâmetros. E talvez seja isso que me interesse mais profundamente, para além da superfície de uma biografia que contenha o elemento deslocamento geográfico.

Por outro lado, acabei traduzindo vários autores da chamada "Literatura Intercultural", uma tendência literária que se desenvolveu a partir da década de 70, inicialmente na Alemanha e depois nos outros países de língua alemã. A função desta literatura feita por estrangeiros era, inicialmente, dar voz às questões e reivindicações dos imigrantes, denunciando a discriminação, registrando o isolamento, o estranhamento, a perda da identidade ou a luta para redefini-la. É claro que estes temas são familiares para quem vive fora do seu país, como nós. Mas a temática não é meu único critério. Escolho os autores conscientemente, pela qualidade literária, por um certo grau de inventividade, pela empatia que sinto com o texto, pela vontade de fazer aquela obra circular entre outros leitores. Traduzi e escrevi, por exemplo, sobre Gino Chiellino, italiano, residente na Alemanha desde 1970, um dos primeiros autores da literatura intercultural. Aglaja Veteranyi era um dos expoentes da nova geração desta literatura.

3. Como foi sua história de migração?

Vim para a Suíça há 15 anos para trabalhar na área de comércio exterior, na Embaixada do Brasil, mas não cheguei a ficar dois anos neste setor. O meu negócio era tradução, português, literatura, eu queria fazer uma pós-graduação. Fui parar em Germersheim, no sul da Alemanha, uma cidadezinha com 20 mil habitantes e nenhum cinema, onde fica o maior centro de formação de tradutores dos países de língua alemã e um dos maiores do mundo. Por incompatibilidade dos sistemas universitários, tive praticamente de refazer a graduação, para só depois poder fazer o mestrado. Hoje, com a uniformização dos sistemas universitários, estes trânsitos ficam mais fáceis. Passei anos recolhida, estudando. Tive a sorte de ser bolsista de uma fundação alemã que me possibilitava participar de seminários por toda a Alemanha, viajei muito. Participei de um grupo de estudos de comunicação intercultural com estudantes de várias universidades alemãs e de vários países do mundo, tive a oportunidade de organizar seminários nesta área. Também fiz parte de um grupo acadêmico de tradução literária no qual discutíamos os originais e as nossas traduções. Havia tradutores de nove línguas, incluindo russo, polonês, islandês, árabe e uma língua africana falada na República dos Camarões, além das línguas européias tradicionais. Foi um período extremamente importante na minha formação. Depois do mestrado, passei a dar aulas no Instituto de Tradução e Interpretação da Universidade de Mainz, onde permaneci até 2002, quando, por motivos pessoais, voltei a morar na Suíça.

Nunca pensei em emigrar, palavra que parece tão definitiva. Pensava sempre em morar um tempo no exterior, ver outros mares, estudar. As coisas foram acontecendo, inevitavelmente: onze anos de Alemanha e agora, nesta segunda vez, já quase três anos de Suíça. Não sofro mais choques culturais drásticos e dramáticos, nem aqui nem no Brasil. Incorporei um relativismo cultural que me serve bem. Sinto falta de algumas coisas, claro, da família, dos amigos, de um certo ritmo de vida. Por outro lado, tenho o privilégio de, através do meu trabalho tanto de tradutora como de professora, ter um contato muito intenso com a língua portuguesa e com a cultura brasileira.

4. Pois é, além de tradutora você também é professora. Fale um pouco desse seu trabalho e da sua formação.

Sempre trabalhei paralelamente como tradutora e professora, desde o Brasil, e sempre achei que estas duas atividades se complementam perfeitamente. O trabalho de tradução é mais introspectivo e solitário, enquanto dar aulas pressupõe comunicação, flexibilidade, empatia, requer uma permanente atualização pessoal e profissional. Sou uma professora convicta, adoro dar aulas, acho o contato com os alunos extremamente enriquecedor.

Fiz Letras no Brasil, Português e Inglês, com duas habilitações, em Tradução e em Interpretação, e depois, na Alemanha, Germanística e Tradução e o mestrado em Literatura Alemã. Depois do mestrado, passei a dar aulas na Universidade de Mainz, assumindo as disciplinas de Português Brasileiro e de Prática de Tradução, já que até então a universidade oferecia apenas a Língua Portuguesa em sua modalidade européia. Na Tradução, trabalhávamos com vários tipos de textos, desde técnicos até literários. Realizei com os alunos uma oficina de tradução literária e chegamos a publicar um conto traduzido na oficina.

No ano passado, fui chamada pela Universidade de Ciências Aplicadas de Zurique (Zürcher Hochschule Winterthur) para implantar o programa de Língua Portuguesa no Instituto de Tradução e Interpretação e ministrar as disciplinas correspondentes. Isso significa que, a partir de agora, o Instituto forma tradutores aptos a traduzir a partir do Português, o que até então não existia na Suíça alemã. Isso representa um importante acréscimo à presença do Português nos meios acadêmicos suíços e também uma oportunidade profissional a mais para a geração de brasileiras e brasileiros que cresceram aqui, bilíngües, e se interessam pela profissão de tradutor.

Além de Português e Cultura Brasileira, também leciono alemão para estrangeiros, em Berna. Tenho alunos dos quatro cantos do globo. No início do curso, quando o pessoal se apresenta e diz de onde vem, às vezes volto para casa e vou direto conferir no atlas a localização exata de um ou outro país: onde é que fica o Cazaquistão, mesmo? É muito interessante.
 
5. Ultimamente foram lançados vários livros, em diferentes línguas, que abordam o tema migração. Você acredita que essa é uma tendência da literatura mundial, um efeito da globalização?

Bem, nos países de língua alemã - Alemanha, Áustria e Suíça - esta tendência remonta ao período de reconstrução da Alemanha depois da II Guerra e ao período do milagre econômico, nos anos 50, 60 e início dos 70. A partir dos anos 50, chegaram várias levas de estrangeiros para trabalhar nesses países. O escritor suíço Max Frisch sintetizou muito bem a situação: "Chamamos mão-de-obra, vieram seres humanos". Mais tarde, chegaram os refugiados políticos e, depois, os refugiados econômicos. Daí já haviam os filhos dos primeiros, em breve os dos segundos, até chegarmos à situação atual. Na Suíça, por exemplo, de cada quatro crianças em idade escolar, uma é filha de pai ou mãe oriundo de outra cultura. É natural que esta maior permeabilidade entre culturas e fronteiras se apresente também na arte e na literatura, o que eu considero uma oportunidade para ambas. Mas a literatura alemã, e as literaturas em geral, não estavam mais imunes a influências estrangeiras antigamente. As influências se davam apenas de outra forma. Vários gêneros literários que consagraram grandes autores da literatura alemã, por exemplo, eram importados, adaptados, e não genuinamente germânicos.

Hoje você tem escritores usando a língua alemã para registrar um olhar não-alemão sobre o mundo, para falar de temas diversos dos que até agora a tradição literária conhecia. E isso é uma grande oportunidade para a literatura e para a própria língua, de romper os próprios limites, de se renovar. É uma chance para o leitor, de penetrar novos mundos, é uma chance - gosto de acreditar nisso - para o mundo, de dar voz às minorias, de tomar conhecimento de culturas remotas. Essa idéia me fascina. Na verdade, é semelhante à função da tradução, de viabilizar algo que até então seria impossível, de desbloquear o caminho da comunicação. Há um escritor de um povo nômade da Mongólia, por exemplo, que escreve diretamente em alemão. A França registra um fenômeno semelhante, a Itália também. Certamente outros países da Europa também possuem autores de outras culturas escrevendo em suas línguas e ampliando as fronteiras dos seus cânones literários.

6. Que outros autores você traduziu e quais os principais temas abordados?

Traduzi muito Ernst Jandl, um poeta austríaco genial. Jandl faleceu em 2000, aos 75 anos de idade, e pertencia àquela geração de escritores que, na segunda metade do século XX, renovou a linguagem poética. Tenho uma coletânea de poemas que mapeiam toda a sua produção poética e que deve ser publicada em breve no Brasil. Ele utiliza a linguagem de uma forma surpreendente, desenvolve o sentido do poema com recursos visuais e sonoros. Seus temas são a vida, a morte, a solidão, as convenções sociais. Jandl era um crítico veemente dos valores burgueses. Paradoxalmente, ele se tornou muito popular, pois seus poemas também são muito jocosos. Ele fazia leituras acompanhado de músicos de jazz - os ingressos se esgotavam num instante - e atualmente há vários poemas seus em livros didáticos.

Kurt Schwitters, artista dadaísta, é mais conhecido por suas pinturas, colagens e esculturas, mas também escreveu textos - poemas e prosas curtas - muito interessantes. Ele também era um crítico sagaz da sociedade burguesa, da arte bem-comportada, mas acabou se distanciando dos dadaístas por considerá-los aleatórios demais. Para ele o critério estético era fundamental. Publiquei um ensaio sobre ele e vários poemas e textos traduzidos na revista Sibila, editada em São Paulo pelo poeta Régis Bonvicino.

Traduzi vários poemas de Aglaja Veteranyi, além do romance, e tenho muitas traduções não publicadas de diversos autores, de H. M. Enzensberger a Erich Fried, passando por autores da antiga RDA, autores experimentais e outros autores migrantes - como Francesco Micieli, que também mora em Berna.

7. Você já pensou em escrever seu próprio livro, talvez sobre o fenômeno da "Literatura Intercultural"?

A literatura intercultural é um tema imenso e complexo, seria necessário fazer um bom recorte para falar deste fenômeno. Tenho vários projetos na gaveta, quem sabe esse poderia vir a ser mais um. Mas, no momento, estou escrevendo a minha dissertação de doutorado sobre teoria de tradução literária. O tempo é bem escasso. Porém, eu não abro mão de traduzir. Se continuar traduzindo autores migrantes, como pretendo, quem sabe um dia tenha material suficiente e representativo para publicar um volume de amostra desta literatura, sem a pretensão de ser exaustiva, claro.


Quem é Fabiana Macchi

Fabiana Macchi nasceu em Porto Alegre, formou-se em Letras na Ufrgs e trabalhou como revisora, tradutora e professora no Brasil.
Em 1990, veio para a Suíça para trabalhar na Embaixada do Brasil, em Berna, onde permaneceu por dois anos. De 1991 a 2002, morou na Alemanha, onde concluiu o Mestrado em Tradução e foi docente de Tradução, Língua Portuguesa e Cultura Brasileira no Instituto de Lingüística Aplicada e Ciências da Cultura da Universidade de Mainz. Na Alemanha, Fabiana também participou de grupos de estudo e trabalho sobre Tradução Literária e sobre Comunicação Intercultural, organizando seminários internacionais e intercâmbios.
De volta à Suíça, atualmente é professora de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira no Instituto de Tradução e Interpretação da Universidade de Ciências Aplicadas de Zurique, professora de alemão na Klubschule Migros e doutoranda em Teoria de Tradução na Universidade de Mainz, Alemanha.
Tradutora e ensaísta, tem publicado no Brasil traduções e introduções à obra de autores alemães, suíços e austríacos contemporâneos e experimentais. É membro do conselho editorial da revista Sibila de Poesia e Cultura, editada pelo poeta Régis Bonvicino em São Paulo, e participa regularmente de congressos internacionais.



(Irene Zwestsch) - CIGA-Informando 34, Maio 2005

http://www.cigabrasil.ch/informando/materias/EntrevistaFabiana.html




aula de euritmia

dispostas em círculos, deveríamos caminhar sobre a linha reta imaginária no chão à nossa frente: quatro passos para frente, três para trás, dois para frente, um para trás. a sensação era de estar voltando sempre, de não avançar realmente. no final, tínhamos avançado três passos, porém com a experiência de dez: seis passos para a frente, quatro passos para trás.

definitivamente, existem outras formas de se movimentar.

6.9.10

"Venha para o pé de mim"

Essa frase nunca mais me saiu da cabeça. Nem essa, nem a alternativa que o Prof. Santos propôs: "Venha para a minha beira". Talvez por terem me intrigado tanto. Talvez por terem tocado de forma mais radical no ponto nevrálgico da certeza que precisávamos ter: a de que falávamos a mesma língua.

Na Europa, quando se pensa em língua portuguesa, pensa-se, naturalmente, em Portugal. Dos brasileiros, diz-se popularmente que falam "Brasilianisch". Meu professor de Tradução na Universidade de Mainz era, portanto, português. Lutávamos – duas ou três alunas brasileiras, duas portuguesas e outras alemãs e ele – para chegarmos a um acordo em relação às versões portuguesas sugeridas para os textos em alemão que ele propunha. Ele era aficcionado por cinema e traduzíamos amiúde as críticas de cinema do respeitado hebdomadário (o Prof. Santos ia gostar da palavra!) alemão "Die Zeit". Para variar, traduzíamos textos literários, outra de suas paixões.

Aprendi muito com o Prof. Santos. Saía das suas aulas cheia de novas estruturas sintáticas, expressões idiomáticas, novas palavras e dúvidas de regência. Ribeira ou ribeiro? Jarra ou jarro? Ele sempre chamava a nossa atenção para estas aparentes sutis diferenças. Meu aprendizado era também reforçado por uma certa teimosia da minha parte. Era um desafio tentar convencê-lo de que minhas sugestões eram corretas e aceitáveis na norma brasileira. Isso exigia de mim mais pesquisa para justificar minhas escolhas.

Acho que foi o Prof. Santos quem me ensinou da forma mais convincente o respeito e a responsabilidade que se deve ter com cada detalhe presente no texto. A intensidade e a angústia com que ele enfrentava o texto me impressionavam muito. Ele realmente sofria, suava. Ficava imerso nas questões que discutíamos, não via a hora passar. Tínhamos de avisá-lo que a aula terminara. Dava-nos a impressão de que sentia na pele cada nuance que não podia ser salva na tradução, que sofria pela própria natureza incompleta da tarefa: a tradução simplesmente não pode ser o original!

Infelizmente não lembro exatamente que texto era. Nem de que autor. Lembro da cena que tínhamos que traduzir: um casal em um quarto relativamente grande, pé-direito alto, o homem está deitado na cama, recostado na cabeceira; e a mulher está à janela, ao lado da cama (precisaria rever todas estas regências...). A cena se passa em um tempo remoto. Ele a olha, acho que estende a mão, e diz: "Komm hierher".

Simples, não? As sugestões das alunas brasileiras para o tal convite? "Venha cá", "Vem cá", "Venha aqui". Tudo possível, certo? Não para o Prof. Santos. Para ele essas soluções simplificavam demais a cena do original. O que ele sugeria então?

- Venha para o pé de mim.

ou

- Venha para a minha beira.

E teceu uma longa explicação por que essas seriam as suas opções. Quase nos convenceu, não fosse a estranheza das duas frases para ouvidos brasileiros. Por sorte nunca precisei traduzir esse livro "de verdade" e nem tomar essa decisão, de que frase usar. A coisa mais parecida que já ouvi até hoje no português do Brasil foi o Roberto Carlos cantando: "Eu quero amanhecer ao seu redor". - Será que o Prof. Santos aceitaria?

- Venha para o meu redor!


Fabiana Macchi

2.9.10

minhocas da cidade

quando chove, as minhocas da cidade ficam tão alegres e otimistas que saem a passear,
sem saber que o planeta não é todo feito de terra. não sei se as minhocas não sabem voltar ou se não querem. ou seja: se são limitadas ou destemidas. o perigo desta aventura é morrerem no asfalto, como de fato acontece. mas não morrer no asfalto compensaria viver a vida toda sem sair da terra e sem sequer saber que o asfalto existe?

acho que nem para as minhocas.