27.8.10

sabedoria

uma vez um amigo me disse:
você carrega demais,
tem que viver menos,
se envolver menos
- ou algo assim.

dei-lhe algum ouvido,
pensei a respeito,
e hoje sei que
não abro mão
de nenhum milímetro
de toda a dor.

sabedoria não é não sentir,
o que é embotamento.
sabedoria é uma mistura
de álvaro de campos
com manoel de barros:
sentir tudo
de todas as maneiras,
mas não sair de si
nem para pescar.

24.8.10

a paisagem

recolheram os escombros. não se vêem mais os sinais da destruição. ficou tudo vazio. daqui onde estou, vejo a planície cinzenta. não há árvores nem arbustos. no chão de pedras e areia, alguns inços reconhecem tardiamente a primavera que passou e insinuam verdes ínfimos. no horizonte, delineia-se algo que talvez venha a ser uma cadeia de montanhas. a vista ainda não é clara. há alguma névoa que apaga a divisa entre mim, a planície, a talvez cadeia de montanhas e o céu. se for montanha, é pra lá que eu vou.

20.8.10

Aprendendo Alemão

Muitas vezes tive a impressão de que se imagina a Europa como uma São Paulo toda feita de Avenidas Paulistas. Eu mesma fiquei impressionada com a infra-estrutura das cidades, quando cheguei. Sem falar no aspecto cultural. Da margem esquerda do Atlântico, é comum que se veja a Europa como o berço da cultura ocidental, do humanismo, do iluminismo, etc. (Claro, também foi palco de duas horrendas Guerras Mundiais, não podemos esquecer). Mas, enfim. A Europa não é a Avenida Paulista, e eu fui parar em Germersheim!

Alguém - não ligado a Tradução - já ouviu falar? Provavelmente não. Pois essa cidadezinha de 20.000 habitantes, sem nenhum teatro, quase nenhum cinema (está bem, havia um galpão que passava Rambo II ou algo assim), à beira do rio Reno, abriga um dos maiores centros de formação de tradutores e intérpretes do mundo (qualquer hora destas eu explico melhor esse ranking).

Pois bem, rio Reno a leste e um raio de 20 km de plantações em todos os outros pontos cardeais resulta num lugarzinho aconchegante, ideal para... estudar, estudar e estudar. Tudo o que se precisava era de uma cama, uma mesa de trabalho e uma bicicleta, principal meio de transporte para que se chegasse mais rapidamente ao destino desejado, que ficava no máximo quatro ruas para cá ou quatro ruas para lá de distância de onde quer que você estivesse. (Há um certo exagero nisso, mas vale o recurso para deixar o texto um pouco mais interessante.)

A bicicleta me levava para os poucos lugares possíveis: faculdade, banco, supermercado, para a Mensa-Disco (a discoteca que acontecia todas as quintas-feiras na cantina da faculdade) e, quando era preciso, também para o médico. Certa vez, bem no início de meus estudos, precisei ir ao ginecologista. De bicicleta, é claro. Boa tarde, pois não? Depois de eu explicar o que estava fazendo ali ele me perguntou: Você teve trânsito?

Em átimos de segundo, conferi meus arquivos mentais em busca de compreensão e percebi que não havia entendido a pergunta. Continuei em silêncio, tentando encontrar ao menos um contexto que fizesse com que aquela pergunta ali, naquela situação, tivesse sentido. Finalmente concluí: sim, ir ao ginecologista é sempre um pouco constrangedor. Já sei: ele está puxando assunto para descontrair. Mas falando de trânsito? Nesta cidadezinha? Eu vim de bicicleta, como poderia ter pego trânsito?

Diante do meu silêncio, que acabou ficando longo demais, ele completou: Trânsito... assim, com o seu namorado...
- Aah!
Pronto. Aprendi na hora o outro significado da palavra “trânsito“ em alemão. Só que este fato, que se passou há quase 20 anos, acabou virando uma anedota sobre erros engraçados de principiantes no estudo do alemão. Talvez você já a tenha até ouvido em alguma rodinha de amigos. Eu já ouvi. Um dia vi alguém contando que a pessoa teria de fato respondido: “Não, o trânsito estava tranquilo, eu vim de bicicleta!“ A piada ficaria melhor, sem dúvida. Mas essa história aconteceu comigo e eu juro: eu nao disse! Apenas pensei!

Se um dia vocês ouvirem a versão errada da história por aí, defendam-me, por favor. Mesmo que seja para perderem o amigo e a piada.


Fabiana Macchi

18.8.10

algumas horas ou alguns anos de espera...

Se eu fosse Jean-Paul Sartre, hoje teria escrito:

"No estado em que me achava, se viessem me avisar que eu poderia voltar tranqüilamente para casa, que a minha vida estava salva, ficaria indiferente; algumas horas ou alguns anos de espera dão na mesma, quando se perdeu a ilusão de ser eterno."



Jean-Paul Sartre, "Le Mur" (1939)
Tradução H. Alcântara Silveira, "O Muro" (1966)

13.8.10

Mauro



A primeira vez que vi Mauro foi através da imensa janela do escritório, que dava para o parque Feuerbach. O parque ocupava o equivalente a dois quarteirões e era rodeado por plátanos podados, daqueles que se vêem nos parques franceses, com os galhos paralelos ao chão. Mauro estava em cima de uma árvore alta, franzina como ele próprio, e balançava-se com alegria. Não sei por que não saí à rua para obrigá-lo a descer da árvore, tal era o meu medo que o fino galho sobre o qual ele se apoiava quebrasse. Os outros meninos olhavam-no com espanto, admiração e acho que com um pouco de inveja, pela coragem e ousadia daquele ato, afinal ninguém sobe em árvores nos parques na Alemanha.

Várias vezes vi aquele menino naquele galho. Da minha mesa de trabalho eu via uma grande parte do parque, e a árvore predileta de Mauro ficava na linha diagonal à minha mesa. Várias vezes pensei em sair à rua para fazê-lo descer, ou até em chamar os bombeiros ou a polícia (a polícia não tem mesmo muita ocupação em uma cidadezinha do interior da Alemanha, onde eu morava), algo que fizesse aquele menino sair de lá antes que um acidente ocorresse. Não lembro se alguma vez cheguei a realmente chamá-lo. Tenho a impressão de ter saído à rua, sim, mas de encontrá-lo já descendo da árvore. Eu tinha medo de assustá-lo, e ele, que tinha tanta destreza em subir na árvore, acabar caindo por minha causa.

Ver o parque Feuerbach na primavera era uma festa para os olhos. Sempre pensei numa sinfonia, com cada planta florescendo ao seu tempo, como instrumentos que tocam a sua parte no momento exato. O retângulo maior, que ficava na altura do passeio e da rua, era contornado pelos plátanos de que já falei. O parque mesmo ficava abaixo do nível da rua, e este retângulo interno era contornado por árvores não muito altas e delgadas, de uma espécie que produz cachos de flores de um rosa muito delicado, quase branco. Durante os poucos dias em que as árvores estavam floridas, era imprescindível ir caminhar debaixo daquele túnel de flores e se extasiar com o exagero da natureza. A densidade das flores era tanta que, estando debaixo da árvore e olhando para cima, não se via o céu, embora a árvore não possuísse uma única folha sequer, apenas flores.

Foi numa destas caminhadas que vi Mauro abraçado a uma destas árvores que vertiam flores. Eu passeava pelo parque extasiada quando ele me viu admirando as árvores e disse, em alemão, com os braços enlaçados ao redor do tronco: „Não é lindo? Eu adoro árvores“. Entre emocionada e surpresa com a cena, respondi-lhe que também adorava árvores, e ele começou a andar ao meu lado, falando sobre as suas preferidas. Eu logo reconheci que era o menino que subia na árvore franzina e alta que ficava na ponta do parque como se fosse o mastro de um navio. Disse-lhe que eu já o conhecia, por vê-lo da minha janela sempre em cima da tal árvore. Seus olhos brilharam: „Você viu como eu subo rápido? Ninguém sobe tão rápido quanto eu! E nem tão alto!“, disse-me com orgulho. Expliquei-lhe que eu tinha medo de vê-lo lá em cima, que o galho não parecia ser tão forte assim, que ele afinal já estava grande e provavelmente pesado para a espessura do galho. „Mas aquela árvore é minha amiga, é a mais alta de todo o parque“, explicou.

Não lembro como continuamos a conversa, mas Mauro disse-me que sua mãe achava que ele gostava de árvores porque tinha nascido no Brasil. Contou-me que fora adotado aos cinco anos de idade. Quando lhe disse que eu também era brasileira, ele passou a me fitar com olhos muito curiosos, certamente procurando o que poderíamos ter em comum. Acho que chegou a dizer algo como: „É que nós falamos alemão com um sotaque diferente, não é mesmo?“ Ele contou-me o que lembrava da instituição onde passou os primeiros anos de vida, e disse que não falava português porque no orfanado ninguém falava com ele. Mas que, ainda assim, ele sabia dizer três frases em português. E fez questão de mostrar: „Meu nome é Mauro. Tudo bem? Boa noite, dorme bem!“ Aquelas frases ditas ali, no meio do parque em flor, com aquele forte sotaque alemão, depois de termos compartilhado nosso amor pelas árvores, de ele ter me contado sobre seu abandono e a sorte que teve de ter sido adotado aos cinco anos, me comoveram muito. E ele seguiu contando a vida, assim à moda dos brasileiros, dizendo que já tinha 14 anos, embora aparentasse onze, que isso era porque ele não fora bem alimentado quando era pequeno.

Morei seis anos em frente ao parque Feuerbach. No final, Mauro já era um rapazote que não sabia que profissão seguir. Comentou comigo que queria trabalhar com madeira, ser marceneiro, já que gostava tanto de árvores, mas que a escola era em outra cidade, um internato, que ele só poderia voltar para casa nos fins de semana e que a idéia de morar de novo numa instituição impessoal o assustava. Pouco tempo depois desta nossa última conversa, fui embora da Alemanha e nunca mais voltei à bela e histórica cidadezinha à beira do Reno.

Faz mais de 10 anos que conheci Mauro. Nunca mais o vi ou tive notícias, nem saberia onde ou como procurá-lo. Não sei o seu sobrenome. Mas hoje lembrei-me muito dele. Assim do nada. Ou nem tão do nada assim. Ando triste, como Mauro quase sempre andava. E é primavera. Nossas árvores prediletas, as minhas e as de Mauro, estão floridas. Muito floridas. Com as cascatas de flores que Mauro e eu amamos. Só que hoje, Mauro, mesmo com pais vivos, a órfã sou eu.


Fabiana Macchi

7.8.10

a volta para casa

acordou sem saber onde estava. estranhou no armário as roupas da mulher que não lembrava ter sido. na cozinha, não reconheceu os pratos e utensílios que já tinham participado do seu cotidiano. no espelho do banheiro, refez as sobrancelhas dos olhos que teimavam não reconhecer nem mesmo os vincos na face que agora ostentava. puxava os fios com a pinça, querendo conferir contorno e clareza também àquilo que os olhos avistavam. o cérebro, ela lavou na pia, na esperança de que anseios e incertezas escorressem pelo ralo. não escorreram.