Formulários e (In)Verdades
Não gosto de formulários. Nem
dos antigos nem dos atuais. Dos que existiam antigamente na Alemanha Oriental
eu não gostava, porque exigiam de uma mulher madura que se lembrasse de todas
as vezes que esteve envolvida com “órgãos armados”, onde, por quanto tempo e em
que posição exatamente. Dos da Alemanha de hoje eu também não gosto, porque
exigem que se comprovem todos os endereços residenciais dos últimos trinta
anos, todos os aumentos salariais obtidos no respectivo período – descontados
os gastos com melhorias do apartamento –, e tudo isso acompanhado de cópias
devidamente autenticadas. Mas não gosto de formulários principalmente porque
eles não me perguntam sobre o meu estado civil.
Ou melhor, perguntam. Mas não
exatamente sobre o meu estado civil. Uma vez que não tenho as obrigações
de uma mulher casada e nem as de uma descasada, mas também não estou livre de
quaisquer obrigações, nunca sei onde marcar a cruzinha. A verdade é que
a minha vida é determinada por uma velhinha. E, para esta verdade, não existe
opção nos formulários.
É claro que a minha velhinha não foi
sempre velhinha, mas sempre foi pequena. Foi um bebê pequeno, uma menina
pequena e uma moça pequena. E, exatamente por isso, o espanto geral foi enorme
quando, aos 34 anos de idade, ela deu à luz um bebê gigante. “Você nasceu
com 56 centímetros”, dizia. “E pesando quatro quilos e cem gramas”. Eu ouvia
esta mesma história todos os anos – durante toda a minha infância –, sempre na
véspera do meu aniversário. Sei de cor todas as minúcias, todas as dificuldades
e complicações do meu nascimento. Neste meio tempo, ela própria já esqueceu
tudo. Ainda sabe que sou sua filha, e que, portanto, deve ter-me dado à luz.
Mas, do fato em si, ela já não se recorda mais.
Aliás, a minha velhinha não teria
mais condições de preencher um formulário. Ela não esqueceu apenas o meu nascimento,
mas tudo o que lhe causou sofrimento, ou seja, grande parte da sua vida. Não se
lembra mais da pobreza na Silésia, das bombas em Berlim e tampouco do meu pai
ela se lembra. Não reconhece a estação ferroviária, o prédio dos correios e nem
a prefeitura da cidade em que vivemos durante a minha infância. “Mas é
Wilkenitz”, eu tentava ajudar, mostrando mais fotografias. Uma do cinema, que
ficava ao lado da nossa casa, outra da
igreja que ela freqüentou durante algum tempo, outra do hotel “Cidade de
Wilkenitz”, onde fomos àquela festa de Natal da associação cultural em que
acabamos isoladas em uma sala separada. É, no brasão da cidade de Wilkenitz há
um lobo, e ela conviveu com a crueldade dos lobos de lá durante trinta anos.
Posso fechar o álbum de fotografias, já não ajuda mais em nada. Minha mãe está
com 80 anos e é completamente dependente de mim. Não se pode mais confiar na sua
memória.
Na minha, sim, ainda se pode
confiar. O que não lhe digo, é claro. O vizinho, em Wilkenitz, que cortou o
nosso fio de luz; o outro, que atiçou o cão contra ela; os que riram, quando
ela chamou por mim chorando em plena quarta-feira, enquanto todos sabiam que a
filha só vinha aos sábados – todos podem confiar na minha memória. Mas sobre
isso me calo quando andamos lado a lado – ela com seus passos curtos e
incertos –, quando me olha, quando conversamos.
Política é um dos temas preferidos
da minha velhinha: “Não admito que falem mal do governo”, defende ela. “O
presidente esforçou-se muito. Este ano havia pinheiros de Natal lindíssimos
para comprar.” Não faço a menor idéia de
como ela pode ter chegado a esta conclusão. Além do mais, há pelo menos 20 anos
não é ela que compra o pinheiro de Natal.
Enquanto seguro-a pelo braço para
atravessarmos a rua, sempre atenta para que não tropece, para que não morra de
susto da buzina de alguma bicicleta, como aconteceu recentemente, explico-lhe
que a Alemanha Oriental não existe mais. Já expliquei-lhe isso pelo menos
trezentas vezes, e pelo menos trezentas vezes ela exclamou indignada: “O quê?! A
Alemanha Oriental não existe mais? E ninguém me diz uma coisa destas?”
Depois, fica pensativa um instante. E então chega o momento de alertá-la para
que tome cuidado com o meio-fio. Na porta de casa, certifica-se: “A Alemanha
Oriental não existe mais? E então como se chama o lugar agora?”
A minha velhinha também não se
esquiva de questões ecológicas. “Não se deve comer cogumelos venenosos”,
ensina ela. “Eles são muito úteis, pois absorvem a poluição do
mundo.”
Nas escadas do prédio, ela pára
ofegante e justifica: “Você não pode esperar que uma senhora da minha idade
seja ligeira como um trem-bala”. No entanto, da própria idade, ela já não
tem mais a menor idéia. “Já devo ter passado dos quarenta”, esforça-se para
adivinhar. Na hora do café, enquanto ponho a mesa, ela graceja: “Trabalhar é
bom, mas olhar é melhor ainda”. E, passando a vista pelas estantes da sala, reflete
sobre a vida após a minha morte: “Tanto livro!”, admira-se. “Quem vai herdar
tudo isso quando você não existir mais?” Precavida, acrescenta em seguida: “Eu,
nem pensar. Não tenho lugar para isso tudo”.
Quando quero um momento livre, ligo
a televisão. Compenetrada, ela acompanha um filme infantil, um jogo de futebol
ou o noticiário. E só faz perguntas durante a partida de tênis: “Essa é a Dóris
Becker? Cruzes, parece um homem!”.
De fato, ela não se recorda de
muitas coisas, aliás da maioria delas. Não sabe mais o seu endereço, o local de
seu nascimento, nem a sua idade. Mas a mim ela
reconhece, sempre. E me chama pelo apelido, pelo único que realmente
tive. Como qualquer mãe, ela daria tudo para ver a sua filha adulta ser criança
outra vez, ao menos uma única vez. “Por uma hora que fosse”, cisma, “eu queria
fazer uma mágica para você voltar a ser criança”. Mas, consciente da ousadia do
seu desejo, acrescenta em tom realista: “Só se você tivesse um tempinho, é
claro”.
E como a minha velhinha – no tempo
em que ainda não era velhinha – sabia muito bem contar histórias, guardei na
memória muito do que ela me contava. Lembro-me do nome de montanhas da Silésia,
como Rabendocken, Wolfsberg e Probsthainer Spitzberg. Lembro-me da Rua
Ebereschenalle, no bairro rico de Zeuthen, e da boa reputação das empregadas da
Silésia nas mansões de lá. Lembro-me de ruas de Berlim, de uma clínica em
Friedrichshagen, de um cemitério em Klein Behnitz, perto de Nauen, e lembro-me
também das datas em uma lápide já há muito desaparecida. Na maioria das vezes,
saber essas coisas me ajuda na hora de preencher formulários. Com exceção da
pergunta sobre o meu estado civil.
Às vezes, penso que não se prevê a
verdade do meu caso, porque é muito difícil dar o nome certo às coisas.
Indícios, como o fato de meu
pratinho de criança ainda estar no armário da cozinha, de meu urso de pelúcia
ainda existir, de a caixa pintada por mim no jardim de infância ainda servir
para guardar carretéis de linha – listar estes indícios, nenhum formulário me
exige, e não há espaço para histórias nos formulários. Histórias como a
da mudança, por exemplo.
Mamãe queria sair de Wilkenitz, mas
não queria se envolver com a mudança. Deveria
ser possível contar das visitas da filha nos finais de semana. Da desordem
no apartamento da mãe. Do pouco tempo que a mãe dispunha, pois ela ainda tinha
– conforme descobriu-se mais tarde – de assistir Enterprise na televisão
e despedir-se de todos os conhecidos na redondeza. E deveria ser possível
relatar o desespero da filha. “Mamãe, eu já providenciei um apartamento para
você e contratei a empresa de mudança. Eu faço o que posso, mas pedi para você,
pelo menos, arrumar as suas coisas!” E então deveria ser possível descrever
como esta mãe - esta mãe! - conseguia, em um instante, expressar no olhar todos
os reveses que o destino lhe havia preparado: a segunda guerra mundial, a fome
e as noites de bombardeio, as tantas doenças, a morte do marido, e agora mais
essa: ter de arrumar o apartamento para a mudança!
Tais histórias deveriam ser
contadas, a fim de se poder chegar mais perto da verdade no meu caso.
Não,
o meu estado civil não é exatamente “solteira”.
Aliás, foi a mudança que me fez
perceber que a minha mãe tinha-se tornado uma velhinha. A velhinha atrapalhada
que estava sempre no meio do caminho e que explicava aos carregadores
impacientes que ela não era preguiçosa, mas que simplesmente gostava muito de
ver televisão. Ela já não era mais a mulher que cortava lenha, cerzia e cortava
a grama. Também não era mais aquela mulher forte que cozinhava para duzentas
crianças na colônia de férias, nem a
corajosa indignada que considerava a sua filha mais importante do que todas as
normas e regras preestabelecidas. Que reclamou para a professora no
jardim de infância: “Como a senhora pôde dizer uma coisa destas à menina?”
Depois que a menina, no dia anterior, defendera-se de uma punição com a
seguinte frase: “Vou contar tudo à minha mãe!” Ao que a professora respondeu:
“Pode contar. Malcriada deste jeito, nem ela vai gostar mais de você”. A menina
chorando, de noite, perguntando: “É verdade que, se eu for malcriada, você não
vai mais gostar de mim?” – “Quem lhe disse uma coisa destas?” – A indignação
desta mãe! Braços levantando a menina e sentando-a no colo. Mãos segurando-a
pelos ombros. O rosto da mãe bem próximo ao seu. A força carinhosa daquelas
mãos que a sacudiam. “Olhe, me escute: você não pode acreditar numa coisa
destas! Não importa o que você fizer, eu serei sempre a sua mãe! E, mesmo se
você se tornasse muito má, você ainda seria minha filha! Mesmo se fosse para a
cadeia, eu continuaria te amando! Sempre, está me ouvindo?” – Mesmo se fosse
para a cadeia. A menina ficou contente. Para a cadeia só se vai quando se é
muito malcriada.
A menina não sabia que aquele momento,
aquela seriedade na voz da mãe ficariam registrados por décadas. Mas talvez
tenha sido isso, talvez tenha sido exatamente este momento sério que tenha
tornado possível suportar todos os outros momentos sérios que viriam mais
tarde. Talvez fosse exatamente isso o que fazia com que a filha, desesperada
diante de cobertas sujas, da coleção de rosas de papel, dos armários precisando
de limpeza, da pilha de jornais velhos e de tantas outras coisas que
atrapalhavam a mudança, não largasse tudo e fugisse dali. O que, mais tarde, a
ajudaria a cuidar da mãe doente. E, mais tarde ainda, lhe daria forças na hora
de comprar fraldas descartáveis.
Mas
isso, tudo isso, são respostas que os formulários não pedem.
E ainda assim, por mais que se
dissesse sobre esta relação entre mãe e filha, seria sempre menos do que o que
se calaria sobre este relacionamento. E não apenas porque cartas abertas por
ciúme e visitas enxotadas por medo da solidão, namorados expulsos e filhos
impedidos, lágrimas e ameaças de suicídio só dizem respeito a estas duas, e a
mais ninguém. Mas, também, porque é sempre assim. Porque há sempre mais
fatos do que relatos sobre eles.
Não, meu estado civil não é
“solteira”. Meu estado civil é “filha não-casada”.
Há
tempos parei de me envergonhar disso.
Na época de
Natal, eu e a minha velhinha fomos a um concerto em uma igreja. A igreja estava
lotada, e o concerto durou aproximadamente uma hora. Três vezes, em uma hora, a
minha velhinha teve de ir ao banheiro. O coro entoava Quem pastores laudavere.
O coro entoava A filha de Sião. A igreja decorada com
velas acesas. As pessoas nos olhando. Pausada e solenemente, entramos e
saímos três vezes pelo corredor principal.
Tradução:
Fabiana Macchi © 2002
Publicado em Expresso Brasil Europa, maio de 2002.
Ingeborg Arlt nasceu em Berlim em 1949 e viveu sob
o regime socialista da Alemanha Oriental. A partir de
1975 passou a publicar poemas, participando de inúmeras antologias. Em 1987 publicou a
novela “Das kleine Leben” (A vida pequena), com segunda edição em 1989.
Nos anos 90, Ingeborg Arlt volta-se para a prosa e para a crítica literária,
passando a publicar livros de contos e ensaios em revistas e coletâneas. A partir de 1994, desenvolve projetos conjuntos com a pintora e ilustradora Sigrid Noack. Ingeborg Arlt recebeu o prêmio Anna-Seghers, da
Academia Alemã de Artes em 1987. Atualmente vive em Brandenburgo.