13.8.10

Mauro



A primeira vez que vi Mauro foi através da imensa janela do escritório, que dava para o parque Feuerbach. O parque ocupava o equivalente a dois quarteirões e era rodeado por plátanos podados, daqueles que se vêem nos parques franceses, com os galhos paralelos ao chão. Mauro estava em cima de uma árvore alta, franzina como ele próprio, e balançava-se com alegria. Não sei por que não saí à rua para obrigá-lo a descer da árvore, tal era o meu medo que o fino galho sobre o qual ele se apoiava quebrasse. Os outros meninos olhavam-no com espanto, admiração e acho que com um pouco de inveja, pela coragem e ousadia daquele ato, afinal ninguém sobe em árvores nos parques na Alemanha.

Várias vezes vi aquele menino naquele galho. Da minha mesa de trabalho eu via uma grande parte do parque, e a árvore predileta de Mauro ficava na linha diagonal à minha mesa. Várias vezes pensei em sair à rua para fazê-lo descer, ou até em chamar os bombeiros ou a polícia (a polícia não tem mesmo muita ocupação em uma cidadezinha do interior da Alemanha, onde eu morava), algo que fizesse aquele menino sair de lá antes que um acidente ocorresse. Não lembro se alguma vez cheguei a realmente chamá-lo. Tenho a impressão de ter saído à rua, sim, mas de encontrá-lo já descendo da árvore. Eu tinha medo de assustá-lo, e ele, que tinha tanta destreza em subir na árvore, acabar caindo por minha causa.

Ver o parque Feuerbach na primavera era uma festa para os olhos. Sempre pensei numa sinfonia, com cada planta florescendo ao seu tempo, como instrumentos que tocam a sua parte no momento exato. O retângulo maior, que ficava na altura do passeio e da rua, era contornado pelos plátanos de que já falei. O parque mesmo ficava abaixo do nível da rua, e este retângulo interno era contornado por árvores não muito altas e delgadas, de uma espécie que produz cachos de flores de um rosa muito delicado, quase branco. Durante os poucos dias em que as árvores estavam floridas, era imprescindível ir caminhar debaixo daquele túnel de flores e se extasiar com o exagero da natureza. A densidade das flores era tanta que, estando debaixo da árvore e olhando para cima, não se via o céu, embora a árvore não possuísse uma única folha sequer, apenas flores.

Foi numa destas caminhadas que vi Mauro abraçado a uma destas árvores que vertiam flores. Eu passeava pelo parque extasiada quando ele me viu admirando as árvores e disse, em alemão, com os braços enlaçados ao redor do tronco: „Não é lindo? Eu adoro árvores“. Entre emocionada e surpresa com a cena, respondi-lhe que também adorava árvores, e ele começou a andar ao meu lado, falando sobre as suas preferidas. Eu logo reconheci que era o menino que subia na árvore franzina e alta que ficava na ponta do parque como se fosse o mastro de um navio. Disse-lhe que eu já o conhecia, por vê-lo da minha janela sempre em cima da tal árvore. Seus olhos brilharam: „Você viu como eu subo rápido? Ninguém sobe tão rápido quanto eu! E nem tão alto!“, disse-me com orgulho. Expliquei-lhe que eu tinha medo de vê-lo lá em cima, que o galho não parecia ser tão forte assim, que ele afinal já estava grande e provavelmente pesado para a espessura do galho. „Mas aquela árvore é minha amiga, é a mais alta de todo o parque“, explicou.

Não lembro como continuamos a conversa, mas Mauro disse-me que sua mãe achava que ele gostava de árvores porque tinha nascido no Brasil. Contou-me que fora adotado aos cinco anos de idade. Quando lhe disse que eu também era brasileira, ele passou a me fitar com olhos muito curiosos, certamente procurando o que poderíamos ter em comum. Acho que chegou a dizer algo como: „É que nós falamos alemão com um sotaque diferente, não é mesmo?“ Ele contou-me o que lembrava da instituição onde passou os primeiros anos de vida, e disse que não falava português porque no orfanado ninguém falava com ele. Mas que, ainda assim, ele sabia dizer três frases em português. E fez questão de mostrar: „Meu nome é Mauro. Tudo bem? Boa noite, dorme bem!“ Aquelas frases ditas ali, no meio do parque em flor, com aquele forte sotaque alemão, depois de termos compartilhado nosso amor pelas árvores, de ele ter me contado sobre seu abandono e a sorte que teve de ter sido adotado aos cinco anos, me comoveram muito. E ele seguiu contando a vida, assim à moda dos brasileiros, dizendo que já tinha 14 anos, embora aparentasse onze, que isso era porque ele não fora bem alimentado quando era pequeno.

Morei seis anos em frente ao parque Feuerbach. No final, Mauro já era um rapazote que não sabia que profissão seguir. Comentou comigo que queria trabalhar com madeira, ser marceneiro, já que gostava tanto de árvores, mas que a escola era em outra cidade, um internato, que ele só poderia voltar para casa nos fins de semana e que a idéia de morar de novo numa instituição impessoal o assustava. Pouco tempo depois desta nossa última conversa, fui embora da Alemanha e nunca mais voltei à bela e histórica cidadezinha à beira do Reno.

Faz mais de 10 anos que conheci Mauro. Nunca mais o vi ou tive notícias, nem saberia onde ou como procurá-lo. Não sei o seu sobrenome. Mas hoje lembrei-me muito dele. Assim do nada. Ou nem tão do nada assim. Ando triste, como Mauro quase sempre andava. E é primavera. Nossas árvores prediletas, as minhas e as de Mauro, estão floridas. Muito floridas. Com as cascatas de flores que Mauro e eu amamos. Só que hoje, Mauro, mesmo com pais vivos, a órfã sou eu.


Fabiana Macchi

2 comentários:

  1. Lindo o texto! Benditas as árvores e as flores por consolarem e amenizarem nossas orfandades...

    ResponderExcluir
  2. Minha amiga,

    Lembro do parque, mas não conhecia esta história. Consigo imaginar o olhar triste deste menino...
    Simone

    ResponderExcluir