6.9.10

"Venha para o pé de mim"

Essa frase nunca mais me saiu da cabeça. Nem essa, nem a alternativa que o Prof. Santos propôs: "Venha para a minha beira". Talvez por terem me intrigado tanto. Talvez por terem tocado de forma mais radical no ponto nevrálgico da certeza que precisávamos ter: a de que falávamos a mesma língua.

Na Europa, quando se pensa em língua portuguesa, pensa-se, naturalmente, em Portugal. Dos brasileiros, diz-se popularmente que falam "Brasilianisch". Meu professor de Tradução na Universidade de Mainz era, portanto, português. Lutávamos – duas ou três alunas brasileiras, duas portuguesas e outras alemãs e ele – para chegarmos a um acordo em relação às versões portuguesas sugeridas para os textos em alemão que ele propunha. Ele era aficcionado por cinema e traduzíamos amiúde as críticas de cinema do respeitado hebdomadário (o Prof. Santos ia gostar da palavra!) alemão "Die Zeit". Para variar, traduzíamos textos literários, outra de suas paixões.

Aprendi muito com o Prof. Santos. Saía das suas aulas cheia de novas estruturas sintáticas, expressões idiomáticas, novas palavras e dúvidas de regência. Ribeira ou ribeiro? Jarra ou jarro? Ele sempre chamava a nossa atenção para estas aparentes sutis diferenças. Meu aprendizado era também reforçado por uma certa teimosia da minha parte. Era um desafio tentar convencê-lo de que minhas sugestões eram corretas e aceitáveis na norma brasileira. Isso exigia de mim mais pesquisa para justificar minhas escolhas.

Acho que foi o Prof. Santos quem me ensinou da forma mais convincente o respeito e a responsabilidade que se deve ter com cada detalhe presente no texto. A intensidade e a angústia com que ele enfrentava o texto me impressionavam muito. Ele realmente sofria, suava. Ficava imerso nas questões que discutíamos, não via a hora passar. Tínhamos de avisá-lo que a aula terminara. Dava-nos a impressão de que sentia na pele cada nuance que não podia ser salva na tradução, que sofria pela própria natureza incompleta da tarefa: a tradução simplesmente não pode ser o original!

Infelizmente não lembro exatamente que texto era. Nem de que autor. Lembro da cena que tínhamos que traduzir: um casal em um quarto relativamente grande, pé-direito alto, o homem está deitado na cama, recostado na cabeceira; e a mulher está à janela, ao lado da cama (precisaria rever todas estas regências...). A cena se passa em um tempo remoto. Ele a olha, acho que estende a mão, e diz: "Komm hierher".

Simples, não? As sugestões das alunas brasileiras para o tal convite? "Venha cá", "Vem cá", "Venha aqui". Tudo possível, certo? Não para o Prof. Santos. Para ele essas soluções simplificavam demais a cena do original. O que ele sugeria então?

- Venha para o pé de mim.

ou

- Venha para a minha beira.

E teceu uma longa explicação por que essas seriam as suas opções. Quase nos convenceu, não fosse a estranheza das duas frases para ouvidos brasileiros. Por sorte nunca precisei traduzir esse livro "de verdade" e nem tomar essa decisão, de que frase usar. A coisa mais parecida que já ouvi até hoje no português do Brasil foi o Roberto Carlos cantando: "Eu quero amanhecer ao seu redor". - Será que o Prof. Santos aceitaria?

- Venha para o meu redor!


Fabiana Macchi

Um comentário:

  1. Pagode também faz literatura...
    Alexandre Pires e Lourenço ao comporem os versos de "Sai da minha aba" foram bem mais explícitos que Roberto Carlos e até redundantes em sinonimias da expressão usada pelo Prof. Santos.
    Confiram: "http://letras.terra.com.br/spc/48804/"

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