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É difícil retratar a obra de Kurt Schwitters (1887-1948) sem ter a sensação de estar deixando alguma coisa importante de lado. Ao mesmo tempo, exatamente a tentativa de abranger toda a sua obra resulta em um movimento panorâmico que, inevitavelmente, deixa de incluir maiores detalhes. Tal dificuldade se deve a dois fatores. Em primeiro lugar, à sua imensa e variada produção: Schwitters foi poeta, prosador, dramaturgo, crítico, ensaísta, teórico, pintor, escultor, arquiteto, editor, publicitário, agitador cultural, etc. — e não exatamente nesta ordem. Em segundo lugar, ao fato de todos estes "Schwitters" estarem intimamente relacionados entre si, técnica e cronologicamente, assim como estão as fronteiras das várias modalidades de arte que ele exerceu. É necessário entender a sua obra como um conjunto de produções variadas, necessariamente interligadas por um forte denominador comum: a sua (sempre mutante e experimental) concepção estética. Por outro lado, é importante também situá-lo em seu contexto artístico e histórico, já que um de seus grandes méritos foi ter feito tudo o que fez, lá, nos idos anos 20 do século passado, quando a arte dominante ainda estava presa às amarras do século XIX e o concretismo e a arte pop ainda levariam décadas para surgir.
Kurt Schwitters, nascido em Hannover, Alemanha, formou-se em pintura e artes plásticas em Dresden (1909-1914), um dos centros do expressionismo alemão. Seu contato com o grupo da revista expressionista Der Sturm (A tempestade), porém, só ocorreu em 1917, quando Schwitters fez uma exposição, juntamente com Paul Klee, na galeria de mesmo nome, em Berlim. A esta altura, a revista Der Sturm conciliava as várias tendências de vanguarda da época, incluindo expressionistas, futuristas, cubistas e dadaístas.
Kurt Schwitters, que até então escrevera poemas em estilo neo-romântico e pintara ao estilo dos naturalistas, descobre a poesia de August Stramm, as teorias de Marinetti e a liberdade dos dadaístas. Era o impulso que faltava para o seu rompimento com as tendências mais tradicionais. Suas primeiras pinturas abstratas datam de 1917, e seus poemas parodiando o estilo expressionista de Stramm, também.
Schwitters aproxima-se e passa a conviver com os dadaístas (principalmente Hans Arp, Tristan Tzara e Raoul Hausmann), e a participar de soirées dadá em Zurique, Praga, Paris, na Alemanha e na Holanda. Uma adesão irrestrita ao movimento dadaísta, porém, não chega a acontecer. Às já citadas influências, viriam somar-se outras, vindas das artes plásticas, por exemplo, do cubismo; depois, dos artistas do Bauhaus, e, mais tarde, do construtivismo russo. Estava formado o húmus de onde brotaria a arte Merz, uma estética criada por Kurt Schwitters e que percorrerá toda a sua obra.
Merz versus Dadá
Merz surgiu, em tese, como mais um movimento de vanguarda que preconizava uma ruptura com valores estéticos, sociais e políticos vigentes. Era, de certa forma, uma extensão do dadaísmo, do qual Schwitters, porém, fazia questão de se distanciar teoricamente. Merz nasceu da necessidade do próprio Schwitters de dar um nome para o tipo de quadro que ele fazia, e que não se encaixava nas denominações existentes. O nome Merz, que não significa nada, foi tirado de um quadro seu, uma colagem na qual a palavra Merz aparecia ao acaso, caco do recorte de um anúncio do Banco do Comércio (Kommerzbank).
A partir de seus experimentos, sempre buscando novas formas de expressão, Schwitters chega ao primado da forma estética, não importando que materiais se usaria para atingi-la. Sob o pano de fundo da destruição causada pela primeira guerra mundial e de uma sociedade necessitando de reestruturação, sua arte passa a se utilizar de dejetos, restos, cacos de objetos — o lixo da sociedade industrial — para reestruturá-los esteticamente. Lá estão, em suas colagens e sobreposições, recortes de jornais, passagens de bonde, nacos de madeira, restos de objetos de metal, etc. Ele explica: "O material utilizado é irrelevante; o essencial é a forma. Por isso utilizo qualquer material, contanto que a obra exija"1. E é precisamente neste detalhe: "contanto que a obra exija", que jaz uma das principais diferenças entre o dadaísmo e a arte Merz. O irracionalismo e a aleatoriedade, apregoados pelo dadaísmo, não eram compartilhados pela arte Merz, cujo objetivo era de produzir, sempre, um resultado estético. Segundo Ernst Schwitters, filho de Kurt, Merz era arte, enquanto o dadaísmo era antiarte. Uma segunda diferença importante era a questão política. A arte Merz não era engajada, no sentido restrito do termo. Kurt Schwitters distanciava-se da reivindicação dadá de estabelecer o comunismo radical como sistema político. Mas continuava ligado a Arp e Tzara, que estavam mais voltados ao abstracionismo. Sua arte era politizada em sentido amplo: Schwitters defendia que a arte deveria ser a cura do seu tempo, deveria relativizar as idéias dominantes, colocá-las em cheque, desestabilizar a estrutura vigente. Em suas soirées Merz, ao contrário das soirées dadá, não havia protesto político, senão o protesto contra o comodismo e a tacanhice burguesa. Era política como crítica social e estética, crítica através da blasfêmia de usar lixo para fazer arte, através da profanação da arte burguesa.
É simplista, portanto, considerá-lo apolítico. Seu ceticismo era conseqüente contra tudo o que se transformasse em consenso, tudo o que se estabelecesse como regra. Schwitters foi um agitador cultural engajado. Seus inúmeros manifestos, ensaios críticos e poemas foram publicados nas várias revistas literárias, de diversos grupos existentes e sua produção era imediatamente traduzida e publicada em outros países da Europa, gerando discussões literárias e estéticas. Suas obras eram expostas na Europa e nos EUA. A partir de 1923, passou a editar a revista Merz, que durou até 1932, sendo um dos principais fóruns para as querelas entre construtivistas e dadaístas, além de ter veiculado outras tantas tendências e polêmicas. Kurt Schwitters tornou-se rapidamente uma figura de proa entre os grupos de vanguarda, estabelecendo uma rede de contatos e trocas com os artistas mais importantes do século XX.
Em 1936, quando a pintura abstrata foi proibida na Alemanha, as obras de Kurt Schwitters foram retiradas dos museus e destruídas. O perigo de sua mensagem libertária fora percebido pelos nazistas; e também por Kurt Schwitters, que partiu para o exílio em 1937, poucos dias antes de seu apartamento ser vasculhado pela gestapo. Schwitters viveu na Noruega até a invasão deste país pelo regime de Hitler, em 1940. Ele e seu filho conseguiram fugir para a Inglaterra, onde Schwitters viveu os anos mais difíceis de sua vida, vindo a falecer em 1948, sem jamais ter retornado à Alemanha.
Merz na Literatura
Kurt Schwitters aplicou o princípio da arte Merz também para a sua literatura, criando a Poesia Merz, apresentada em vários manifestos. Em analogia a seus quadros, montagens e colagens, Kurt Schwitters utiliza na literatura restos e cacos da linguagem cotidiana, da linguagem da propaganda, de slogans, ditos populares, banalidades e clichês.
No posfácio da primeira edição de seu polêmico livro Anna Blume (1919), Schwitters esclarece:
A poesia Merz é abstrata. E utiliza, da mesma forma que a pintura Merz, pedaços de coisas já existentes, no caso, de frases retiradas de jornais, de outdoors, de catálogos, de conversas, etc., com ou sem modificações. (Isto é terrível.) Estes pedaços não precisam ter relação com o sentido, pois o sentido não existe mais. (Isto também é terrível.) Também não existem mais elefantes, existem apenas pedaços de poema. (Isto é horrível). E vocês? (Levantem recursos para a guerra!) Decidam sozinhos o que é poesia e o que é acessório2. A publicação do poema "An Anna Blume" (Para Anna Flor), com o subtítulo de "Poema Merz I", causou um grande impacto na época. O poema foi impresso em cartazes de um metro de altura e espalhado pela cidade de Hannover. Kurt Schwitters foi severamente atacado pela crítica e tachado de demente pela burguesia letrada. Choveram cartas de protesto nos jornais, artistas saíram em defesa do autor, e o próprio Schwitters escreveu várias crônicas e cartas abertas defendendo a si próprio e atacando os críticos. Graças à polêmica, o poema tornou-se extremamente popular e arrebatou os leitores mais afeitos a novidades, que passaram a recitar o novo "poema de amor" de cor e salteado. "An Anna Blume" tornou-se um mito e entrou para a história da literatura de língua alemã como um dos mais polêmicos textos de todos os tempos. Sua recepção inclui um sem-fim de paródias e citações ao longo das décadas (recentemente, inclusive por um famoso grupo de hip-hop alemão).
A polêmica continuou. O poema é realmente uma grande colagem, seguindo o programa da poesia Merz, e causa, ainda hoje, estranhamento. As deformações gramaticais, falsas regências e ortografia, bem como as seqüências de pronomes são elementos da poesia expressionista. Os resquícios da fala dialetal e as frases feitas tiradas de concursos de charadas ou de ditados populares são elementos Merz. A introdução de frases que quebram a lógica semântica ou elementos que rompem com a lógica gramatical também são recursos freqüentes encontrados na poesia expressionista, sem falar que tudo o que rompe com a lógica é também típico dos dadaístas.
Quem é esta Anna Flor, musa de cabelos amarelos e "vestido de chita", louca e irreal, que caminha com as mãos e usa vestidos que se podem serrar? Um delírio capaz de ser apreendido apenas por 27 sentidos? Um mero deboche — os elementos grotescos, irônicos e infantis a comprovar — do sentimentalismo romântico pequeno-burguês? Há quem diga que o amor seria sério, o páthos expressionista ainda presente no poema, para ser — claro! — imediatamente "dadaizado" nos versos a seguir3.
Constante Evolução
O especial da literatura de Kurt Schwitters é a sua diversidade e o seu alto grau de inventividade. Schwitters não se deixou limitar por estilos, nem mesmo pelos que ele próprio criou. Ao mesmo tempo em que desenvolvia sua própria abordagem construtivista nas artes plásticas, pintava abstrações puras e paisagens bucólicas. Trabalhava, paralelamente, em escultura, artes gráficas, fotografia e arquitetura (em suas fantásticas construções Merz). Chegou a trabalhar na concepção de espetáculos de dança, em roteiros de filmes, libretos de óperas e, inclusive, a compor peças para piano (estudou harmonia e composição para isso, mas chegou à conclusão de que suas peças, meros experimentos teóricos, eram impossíveis de ser executadas).
Sua produção literária registra, igualmente, incursões e experimentos em todos os gêneros e estilos, bem como uma série de intersecções entre os gêneros. Trabalhou com várias técnicas, em várias concepções de métodos, em constante pesquisa. Muitos de seus poemas são cadeias de palavras sem concatenação semântica lógica, aglomerados de verbos inventados e palavras desconexas, formando uma composição rítmica, às vezes visual. Outras vezes, uma seqüência semântica lógica é interrompida pela introdução de um elemento que sugere outros sentidos, que remete a outra cadeia lógica. Nestes casos, a associação de uma palavra com outra não confirma o significado da primeira, mas desconcerta-o, relativiza-o, ou até o invalida por completo. Às vezes, as palavras aparecem descontextualizadas, referindo-se senão a si próprias, interligadas, na melhor das hipóteses, a nível sonoro ou rítmico.
Em suas pesquisas poéticas abstracionistas, Schwitters compõe poemas com numerais, com letras, poemas concretos, visuais, ou poemas sonoros apenas com elementos supra-segmentais, sem referencial verbal. Em seus poemas sonoros, utiliza, por exemplo, letras maiúsculas e minúsculas como um sistema de notação, para demarcar crescendos e diminuendos. Seus poemas visuais incluem desenhos feitos com carimbos e painéis em que as letras são personagens de pequenas histórias. Também utiliza recursos tipográficos variados, como letras de vários tipos e tamanhos em distribuição não linear na página. A linguagem e os recursos da propaganda (ele próprio ganhava a vida como publicitário) também fluíram para o seu trabalho. O limite entre palavra e imagem, entre literatura e pintura, é, para Schwitters, tênue. Suas colagens com recortes de jornais, classificadas como artes plásticas, poderiam, igualmente, constar como poesia visual.
Dentre as várias técnicas de poesia desenvolvidas por Kurt Schwitters, mais como exercício teórico e por isso sempre com poucos exemplos, estão o Poema-i, cuja técnica era recortar, em sentido longitudinal, um texto já existente, transformando a primeira metade do texto em poema. Se na poesia Merz existia o processo de recortar e colar, na Poesia-i existe apenas o primeiro passo.
Schwitters escreveu um romance (existem fragmentos de um segundo), vários contos, pequenos textos (que às vezes ele chamava de "Poesia Merz") e histórias infantis, sempre com elementos grotescos, satíricos, irônicos, anunciando o que, mais tarde, desembocaria no surrealismo. No teatro, além de peças, cenas e esquetes, desenvolveu a "teoria do palco Merz", um palco com elementos móveis, de formas geométricas variadas, com a finalidade de eliminar as fronteiras entre texto, ação, cenário e encenação e fazer do teatro uma arte absoluta. Depois, desenvolveu a "teoria do palco Merz normal", em oposição à sua própria teoria do palco Merz. Sua Ursonate, ou Sonata Primordial (de "primórdios"), um longo poema sonoro não-verbal, surgido a partir da influência de Raoul Hausmann, foi composta como uma peça musical, com melodias e ritmo. Algo entre poesia e canto, com a estrutura de uma sonata. Na época em que compôs a sonata, Kurt Schwitters partiu de estudos de harmonia e composição, tentando criar um sistema de notação semelhante ao sistema de notação musical. Acrescentou à "partitura" uma série de instruções para a execução. Mesmo assim, aos músicos que se aventuram a interpretar a Ursonate, uma peça de aproximadamente 35 minutos de duração, resta uma partitura muito aberta, passível de várias interpretações e reinvenções.
A recepção da obra de Schwitters, bem como de toda a arte produzida na efervescente década de 20 do século passado, sofreu a interrupção brutal do regime nazista e, depois, da II Guerra Mundial. O isolamento do exílio, a falta de possibilidade de publicação, as várias mudanças, entre tantos outros fatores, contribuíram para que muitos manuscritos se perdessem ao longo dos anos. Com Schwitters não foi diferente. Foram necessárias décadas para que a sua obra fosse reencontrada (vários quadros estavam danificados por terem passado anos mal embrulhados em porões úmidos), para que seus manuscritos fossem organizados, publicados e voltassem, assim, ao convívio das gentes.
Com todas as adversidades e o decorrente atraso da recepção, a influência da obra experimental de Schwitters é visível tanto nas artes plásticas, como na literatura, no teatro e na música. Ele tinha consciência da importância do seu papel para a arte contemporânea, e dizia com humor — e com razão: "Sei que sou importante como fator de evolução da arte e que, como tal, vou continuar sendo importante". E, paciente, completava: "Esta é a minha herança para o mundo, e não me aborreço que ele ainda não me possa compreender"4.
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Notas
1 SCHWITTERS, Ernst (org.). Kurt Schwitters — Anna Blume und ich. Zürich-Hamburg, Arche, 1996, p. 14. 3 Cf. SCHMALENBACH, Werner. Kurt Schwitters. München, Prestel, 1984, p 214-215. 4 LACH, Friedhelm (org.). Kurt Schwitters — Das literarische Werk. Bd 1-5, Köln, DuMond Schauberg, 1973, p. 7.
Publicado na Sibila - Revista de Poesia e Cultura. N. 7, 2004
Republicado na revista Germina Literatura, no especial "Cinco anos de Sibila", em Retrospectiva, Três bons Momentos, dezembro 2005
http://www.germinaliteratura.com.br/sibila2005_kurtschwitters.htm